Edição #1 - O tédio que a gente não permite
Outro dia, percebi que não sei mais ficar entediado. Não é que eu esteja sempre ocupado, é que, quando não estou, invento alguma coisa pra ocupar.
Abro o celular, checo um e-mail que já sei que não chegou, jogo uma partida de Sudoku, passo o dedo na tela como quem procura um sentido, e, quando vejo, mais meia hora se foi.
É curioso: a gente diz que quer paz, mas quando ela aparece, dá nervoso.
O silêncio parece erro, o tempo livre parece ameaça.
O tédio virou um tipo de vazio que a gente preenche no reflexo, como quem tapa um buraco na parede com qualquer coisa que sobrou na mão.
Antigamente, o tédio era uma pausa.
Hoje ele é um bug.
Vivemos num mundo que transformou toda ausência de estímulo em sinal de falha.
Se não estamos produzindo, estamos perdendo tempo.
Se não estamos aprendendo, estamos ficando pra trás.
Se não estamos curtindo, postando, comprando, reagindo, parece que algo está errado.
Mas o tédio é exatamente o contrário disso.
Ele é o espaço onde as coisas voltam a fazer sentido.
Quando nada acontece, o cérebro finalmente tem chance de conversar com ele mesmo.
E é aí que aparecem as ideias, as memórias, os incômodos, as vontades, tudo aquilo que o barulho diário mantém abafado.
A ironia é que a maioria das nossas “grandes ideias” nasceu em momentos de tédio.
Na fila do banco. No banho. No trânsito.
Naqueles instantes em que o corpo tá preso e a cabeça, livre.
Só que agora, em vez de pensar, a gente rola a tela. Assiste a um corte ou a um TikTok.
E quando o pensamento começa a surgir, vem a notificação — e lá se foi a chance de descobrir alguma coisa nova sobre si mesmo.
Talvez o problema não seja o tédio, mas o medo de ficar sozinho com a própria mente.
Porque ela fala — e fala alto.
E às vezes diz coisas que a gente não quer ouvir.
Ficar parado é perigoso.
Pode te fazer perceber que aquele trabalho te esgota.
Que aquela rotina não te serve mais.
Que você está se mantendo ocupado pra não encarar o que incomoda.
Ou simplesmente que você não sabe o que quer, e admitir isso é um pequeno colapso existencial.
Então a gente evita.
Enche a agenda, o feed, o fim de semana, o calendário.
Finge que é falta de tempo, mas é medo de silêncio.
Outro dia, fiquei dez minutos sem fazer nada.
De propósito.
Deitei no sofá, deixei o celular na outra sala e encarei o teto.
No começo, foi horrível.
Senti vontade de levantar, de mexer em algo, de “aproveitar melhor o tempo”.
Mas depois veio um tipo estranho de alívio, como se o corpo dissesse: “até que enfim”.
Não aconteceu nada de extraordinário.
Não tive uma epifania, não inventei uma startup, não me iluminei.
Mas quando levantei, senti que estava um pouco mais presente.
E talvez seja isso que o tédio faz: devolve a gente pro agora.
A verdade é que a vida não é feita de picos.
A maior parte dos nossos dias é morna — e tudo bem.
Só que a gente foi treinado pra achar que “morno” é fracasso.
Queremos sentir sempre algo grandioso: amor intenso, sucesso meteórico, prazer imediato, produtividade absurda.
Mas ninguém aguenta viver em alta voltagem o tempo todo.
O tédio é o silêncio entre as notas que permite a melodia existir.
Se você acha que sua vida anda sem graça, talvez ela só esteja em repouso.
E repouso não é vazio, é solo fértil.
É ali que as ideias criam raiz, que o corpo descansa, que a mente se reorganiza.
Nos venderam a ideia de que “viver bem” é ter uma vida interessante.
Mas talvez o segredo seja ter uma vida habitável.
E pra isso, o tédio não é o inimigo, é o alicerce.
Ele é o que separa o prazer da compulsão, o movimento da fuga, o silêncio da ausência.
Não é fácil. Ficar em paz exige prática. Mas da próxima vez que o tédio bater, tenta não correr dele. Senta junto. Falho com frequência, ainda assim, olha pra ele como quem olha pra uma visita antiga que voltou sem avisar. Ele pode trazer notícias.
🔗 Indicação da semana
▶️ Vídeo:
📘 Leitura: Por que o tédio pode ser bom para o cérebro, BBC News
✉️ Fechamento
Se esse texto te deu vontade de desligar por um tempo, já valeu.
Se te deu vontade de pensar em silêncio, melhor ainda.
E se você chegou até aqui, obrigado.
Nos tempos que correm, ler com calma já é um ato de resistência.
Até semana que vem,
Maurício


Filho ! Pensamos que o vazio é o NADA , mas na verdade ele é a morada do novo ! Parabéns pela profundidade da escrita ! Amei ❤️
Quando produtividade significa o nosso ser, apenas existir se torna algo inaceitável.
Sinto exatamente o que vc sente
E digo mais, a mente cobra... e cobra com juros, especialmente quando finalmente vamos deitar