Edição #6: O pedaço que sempre falta
Morar fora é aceitar que nenhum lugar completa tudo o que a gente é
Nenhum lugar nos completa. Essa é uma das primeiras verdades que a gente descobre depois de viver tempo demais longe de casa. É como se cada cidade guardasse uma parte nossa e, onde quer que a gente esteja, exista sempre um pedaço faltando.
Quando estou em Toronto, sinto um vazio discreto, mas constante. Falta o calor das pessoas, o improviso, o barulho familiar. Falta a conversa furada com desconhecidos, o toque, o jeito brasileiro de existir no mundo. Falta a cerveja na rua no copo americano, a risada alta, a espontaneidade que nasce sem esforço. Toronto me dá ordem, segurança, silêncio. Mas às vezes tudo isso pesa. Às vezes eu queria só alguém puxando papo na fila do mercado ou um convite de última hora para uma cerveja em qualquer esquina.
Quando estou no Brasil, o vazio é outro. Falta a tranquilidade de caminhar sem olhar para os lados o tempo todo. Falta a leveza de ser só eu, sem julgamento, sem disputa silenciosa. Falta aquela sensação de que ninguém está tentando passar por cima de ninguém. Falta a cerveja no balcão do bar, sozinho, sem ninguém esperando nada de mim. Falta o anonimato confortável que Toronto me dá.
É como se minha vida tivesse se dividido em dois mundos que não conversam perfeitamente entre si. E, no processo, eu também me dividi um pouco. Morar fora não transforma ninguém em cidadão do mundo. Transforma em alguém que nunca se sente completamente inteiro em lugar nenhum. Sempre tem algo que fica de fora. Um cheiro, uma comida, um jeito de falar, uma forma de ser entendido sem precisar terminar a frase. Ou o oposto: um silêncio, uma segurança, uma calma que só existe do outro lado da fronteira.
Quando estou aqui, falta algo de lá. Quando estou lá, falta algo daqui. Não é tristeza, não é saudade simples. É só essa sensação estranha de que sempre existe um lado da minha vida que fica esperando por mim. Uma parte que nunca viaja junto. Viver entre dois lugares faz isso. A gente aprende a aceitar que pertence aos dois e, ao mesmo tempo, não pertence completamente a nenhum.
Morar fora te dá muito, mas leva algo também. Leva o conforto de uma identidade única. Leva aquele senso simples de “eu sou daqui”. Em troca, devolve perspectiva, amplitude e uma saudade que nunca dorme. Eu não sei se algum dia vou me sentir completo em um único lugar. Mas estou entendendo que essa falta não é falha. É consequência. É o eco dos lugares que me formaram, me dividiram e me ampliaram.
O pedaço que falta não é ausência. É memória. E, no fundo, é o que me mantém inteiro.
✉️ Fechamento
Se esse texto te lembrou de algum lugar que ainda mora em você, já valeu. Se te fez entender melhor esse vazio que acompanha quem vive entre mundos, melhor ainda. E se você chegou até aqui, obrigado. Pertencer é difícil, mas ler com calma também é.

